segunda-feira, 9 de maio de 2016

O velho que roubava livros



Conto publicado no Diário de Santa Maria no período da Feira do Livro 2016. 

O velho que roubava livros – capítulo I – 23/24.04.2016

Muito antes de Markus Zusak lançar o livro A menina que roubava livros eu já era velho e já roubava livros nas feiras de Santa Maria e algumas da região. Eu estaria fazendo um plágio escrevendo sobre roubo de livros? Pode ser que sim, afinal, tudo se copia. Mas eu não estou me importando com isso. Admiro a Lei de Lavoisier que diz: na natureza nada se cria, na se perde e tudo se transforma. Então, eu não tenho nada a ver com a menina do escritor australiano.
Eu moro num desses prédios velhos da avenida Rio Branco. Estou lá desde os tempos em que Santa Maria era um efervescente centro ferroviário. Faz tempo, mas ainda ouço, nas minhas noites de insônia, os apitos dos trens.
E o que faz um velho celibatário nessa cidade de estudantes? Todos os dias venho para a praça Saldanha Marinho, essa é a minha rotina. Compro o jornal e leio sentado em um dos bancos próximos ao coreto. Vem de longe essa vida, dos tempos em que havia tartarugas no chafariz e ainda não havia o buraco do Behr. Após a leitura repasso para algum amigo da velha guarda, parceiro de ócio na praça. Tenho o hábito de não carregar lixo para casa e jornal é um antro de traças. A praça é o destino dos velhos... e das pombas. Um refúgio para a solidão, um alento para o convívio. Aqui todos me conhecem, poucos sabem o meu nome e eu também sei o nome de poucos. Eduardo é um dos que conheço e chamo pelo nome. Uma vez por semana eu faço uma graxa. Eduardo me põe em dia com os acontecimentos dos frequentadores mais populares do centro. Eu era freguês do Paulinho, sempre comprava um bilhete de loteria dele, hoje sou freguês de Eduardo. Nesse momento ouço as duas batidinhas na caixa. É o engraxate pedindo para eu colocar o outro pé para dar seguimento ao lustro. Isso foi o que sobrou para preencher a vida de um antigo bon vivant da cidade. Recordar... recordar... e contar as minhas peripécias na feira do livro. Adoro livro, adoro a feira do livro. Então, tudo que eu contar vai se passar aqui na praça ou vai envolver livros. Ah! Eu não me apresentei: meu nome é Odracir.
Agora vou começar a leitura de um livro que roubei na feira de Caçapava no ano passado A ninfa inconstante de Guillermo Cabrera Infante.

O velho que roubava livros – capítulo II – 25.04.2016

Para me apresentar tenho que contar a história de meu pai. O velho Ricardo era um bem-sucedido comerciante de Santa Maria. Nasceu em 1903, alguns meses antes do tricolor de Porto Alegre e aos vinte anos começou um pequeno comércio na rua do Acampamento e prosperou vertiginosamente. Aos vinte e sete casou-se com Madalena – filha de um fazendeiro – e desse enlace nasceu em 1935 o único filho. Minha mãe, não sei porque cargas d’água, queria colocar meu nome de Luiz Carlos. Meu pai como um atento observador da política foi contra.
– Imagina! Homenagear um comunista! – foi taxativo.
Minha mãe silenciou, não iria contrariar o marido. Naqueles tempos as mulheres eram submissas e Madalena aguardou a decisão do esposo. Consta que o velho andou pelo quarto do Hospital de Caridade Astrogildo de Azevedo e parou em frente a janela observando a rua. Lá fora, embaixo de um pergolado, alguns médicos conversavam animadamente. Meu pai, num estalo, virou-se para a cama onde repousava a minha mãe. Puxou uma caneta do bolso e escreveu o próprio nome em letras garrafais num papel que estava sobre a mesa de cabeceira. Colocou contra a luz da janela e leu o nome invertido.
Quando Madalena acordou, Ricardo alcançou o papel com o meu nome. Estranhou o porquê de o marido escrever. Bastava dizer que o filho teria o mesmo nome do pai. Normal naqueles tempos, ela concordaria sem problemas. Então, Ricardo sugeriu que minha mãe virasse o papel e lesse o nome pelo avesso.
– Odracir? Ricardo! Você quer colocar o nome do guri de Odracir? – perguntou com uma cara de espanto e contrariedade.
– Claro, Lena – meu pai chamava minha mãe de Lena –, o guri vai ser o meu avesso. Quero que seja melhor do que eu.
Meu pai estava certo em seu prognóstico. Eu seria o seu avesso. Ele fora um trabalhador incansável, eu um “boa vida” descansado.  
Naquele dia minha mãe estava lendo Os três Mosqueteiros. Sugeriu os nomes Athos, Aramis, Porthos ou Dartagnan. Mas o velho Ricardo foi taxativo.
– O guri vai se chamar Odracir.
 

O velho que roubava livros – capítulo III – 26.04.16

Como eu ia dizendo, a praça é o meu habitat. E o período que eu mais gosto e mais me divirto é o mês de aniversário da cidade quando acontece a feira do livro. O mês de maio em Santa Maria é tudo de bom. A feira tem essa capacidade de aproximar as pessoas. Todas as pessoas tem uma história para contar e todas acalentam o sonho de escrever um livro. José Saramago dizia que “todos são escritores só que alguns não escrevem”. Eu acalentei o sonho de ser escritor quando jovem – tempo eu tinha, não tinha perseverança –, nunca fui de pegar no pesado, e escrever requer disciplina e pesquisa. E, convenhamos, ter uma vida folgada e sem compromisso era mais emocionante do que ficar horas a fio diante de uma maquina de escrever. O tempo passou e as ideias deixaram de vir e aquele desejo de colocar uma história no papel se dissipou pelos anos. Hoje, sou um leitor voraz. Sou compulsivo por livros. Muitas vezes adquiridos de forma não muito republicana, para usar uma palavra da moda. Afinal, eu vivo sob a égide do marasmo e preciso ter alguma emoção. E roubar livros é empolgante.
Eu caminho pela avenida Rio Branco para queimar calorias e pratico leitura numa salinha que organizei com esmero no meu apartamento. Durante parte do dia perambulo pelo centro. Farei isso até o dia que não conseguir mais manter-me em condições dignas de uma vida solitária e alguém, caridosamente, me encaminhar para um asilo. Como eu já comentei: nunca fui de trabalhar, vivo das rendas acumuladas pelo meu pai. Tive uma vida de playboy e não tive tempo de construir família, mas pelo menos não dilapidei o patrimônio dos meus pais. Nesse caso não decepcionei o velho Ricardo. Assim, quando eu morrer já deixei o testamento. Doarei minha fortuna para financiar a feira do livro. Já que de forma ilícita eu financio minhas leituras, nada mais justo que eu retorne com meus bens o financiamento de futuras feiras. Mas por enquanto, eu só tenho um único desejo: deixar minha biblioteca mais volumosa. E para isso estou aqui na praça. Vamos ver o que temos para hoje.
Já que falei em morrer, quem sabe eu garimpo O cemitério de Praga de Umberto Ecco.

O velho que roubava livros – capítulo IV – 27.04.16

Eu preciso fazer uma pausa nessa narrativa. Essa história não está no tempo real da feira, e eu preciso dar um tempo na minha vocação de ladrão de livros. Há uma necessidade fremente de algumas lembranças amargas. Tristes rememorações porque não podemos ficar alheios a uma tragédia de incalculáveis proporções.
Sou malandro, um velho que já viveu demais e se diverte roubando livros. Mas sou emotivo. Hoje é um dia que me desconcerto e me desencontro e não consigo viver na minha normalidade. Minha vontade era de continuar contando minhas peripécias na “arte” de adquirir meus livros. Hoje, não. Hoje vou me dedicar ao ócio e lamentar a existência humana. Essa é a minha “condição humana” hoje... nunca li Hannah Arendt.
Tem sido assim em todos os dias 27. Eu seleciono alguns livros e fico lendo trechos a esmo. As histórias ficam desconexas, mas é essa minha intenção. Não quero uma história real. Desejo uma confusão de personagens e uma balbúrdia de enredos. A lógica inversa não me fascina, mas me conforta no ato solitário de manusear os livros.
Para um morador da avenida Rio Branco a trágica noite do dia 27 de janeiro de 2013 foi de susto e aflição. Da janela de meu quarto pude ouvir os gritos desesperados dos jovens na boate Kiss. Aquilo foi uma loucura. Já leram Dante? Foi o inferno de Dante, para resumir como defino aquele descalabro. Do meu apartamento eu não queria imaginar o resultado de tamanha agitação vinda da rua dos Andradas. Gritos. Sirenes. Buzinas. Tumulto generalizado.
Não suportei e desci para enfrentar a madrugada. O centro de Santa Maria fervilhava. O que um velho octogenário faz para ajudar? Imaginei que se não atrapalhasse estaria ajudando bastante. Então, me postei na esquina junto a parede de um banco e fui testemunha ocular da tragédia da boate Kiss. O resultado daquilo tudo estava a olhos vistos: mortes. Nunca mais tive um sono tranquilo. Ainda ouço os gritos de socorro. Hoje, são as minhas noites que pedem socorro. E agora leio trechos de Assim começa o mal de Javier Marias.

O velho que roubava livros – capítulo V – 28.04.16

Eduardo é um excelente profissional. Os sapatos ficaram brilhando. Pago e deixo uns trocados a mais e vou para o meu périplo pela feira do livro. Eu frequento a feira em sua plenitude, não tenho pressa em folhear os exemplares em cada banca. Os livros que pretendo adquirir não são escolhidos ao acaso, por impulso. Eu faço uma lista muito antes da abertura da feira. Elenco uma média de quinze livros para o período. Evidentemente, seleciono pelos meus autores prediletos. A minha tática – modus operandi – como falou certa vez um amigo que pretendia conhecer esse know how para aquisição de livros. Jesus o nome desse amigo. Mas faltou coragem para exercitar o furto de livros. Ainda acho que seu nome o impediu. Jesus é uma pessoa honesta demais para roubar. Para cometer um delito por menor que seja. Mas a história do Jesus e sua namorada eu contarei mais adiante.
Durante a feira eu me visto a caráter. Terno e gravata. Nos dias de chuva ou baixa temperatura acrescento à indumentária um chapeuzinho para proteger a minha calvície. Um senhor de idade vestindo terno é insuspeito diante de um estande de livros. Pelo contrário, tratado com deferência.
Como disse, eu não tenho pressa, em algumas bancas já me tornei amigo dos atendentes e eles não fazem a menor ideia do porquê de minha presença, diuturna, durante a feira do livro. Para evitar suspeitas quando tenho êxito no furto, eu adquiro outro exemplar. Junto com o roubo uma aquisição em cash. Quem duvidaria de um ancião, barba branca e um assíduo comprador de livros? Desconfie de um velho sorridente e gentil. Esse o meu conselho aos livreiros.
Hoje, em um estande de importante editora do estado eu furtei A menina que roubava livros e comprei Os ratos de Dionélio Machado.
Vou para casa mais cedo. Tenho muito que aprender com essa menina. Se bem que eu me identifico mais com os ratos.


O velho que roubava livros – capítulo VI – 29.04.16

Era início da tarde. Logo após a abertura da feira eu estava, displicentemente, manuseando um livro do Paulo Coelho – só folheando, sou preconceituoso e não leio esse escritor – quando vejo a Leonardinha do outro lado da banca revirando a caixa de saldos.
Uma antiga namorada filha de uma tradicional família. Por conta de nossas folgadas mesadas passamos três meses num distante verão em Tramandaí. Ela queria um marido para a vida toda e eu queria viver a vida toda sem relacionamento. Nossos pais faziam gosto do casamento. Quando eu percebi a armadilha em que estava me metendo, pulei fora. Alguns meses após, li nas colunas sociais que ela casara com um médico e nunca mais nos falamos. Nos encontramos em um ou outro evento social, mas, apenas, trocamos olhares e discretos cumprimentos.
Leonardinha era de origem italiana cuja família ficou rica vendendo vinho de péssima qualidade e queijos com alto teor de sódio. E sempre fora uma pessoa unha de fome... mão de vaca. Tudo era pelo menor preço. Lógico, na feira do livro, ela estaria revirando os saldos.
Éramos um lindo casal – como disse minha mãe: um feito para o outro –, mas eu não era feito para ninguém. E, agora, vejo que o tempo foi cruel com Leonardinha. Tudo bem, eu também sou velho, mas ainda apronto com quem dá mole. Ora, para que servem os comprimidos azuis?
Nesse momento Leonardinha está mais próxima, e manuseia Ulisses de James Joyce. Não acredito que aquela anta vai comprar o Ulisses. Cá entre nós, ela não deve ter lido O Pequeno Príncipe. Livro que não li e não pretendo ler.
– Moça quanto é esse? Aceita cartão de crédito? – a voz de Leonardinha era inconfundível.
Nesse momento, na hora de fechar o negócio, como por instinto peguei o primeiro livro que estava ao meu alcance e enfie o rosto nele. Larguei e virei às costas para ir em direção o estande ao lado.
– Olá Odracir, não reconhece uma antiga paixão?

O velho que roubava livros – capítulo VII – 30.04.16

Foi impossível ignorar o chamado da antiga namorada. Sou um salafrário, mas guardo resquícios de uma boa educação. Eu estava diante de uma dama e um bon vivant sempre trata as damas com deferências, mesmo que ela tenha sido outrora um calo no sapato.
Chamou-me atenção o fato de Leonardinha estar com Ulisses e isso aguçou minha curiosidade. Convidei para um cappuccino no Café da Casa de Cultura. O sim da velhota colocou por terra minhas intenções de adquirir – no melhor estilo Odracir de comprar livros – Crime e Castigo de Dostoievski naquela tarde com prenúncio de tempestade.
Num primeiro momento seria um castigo aquela companhia e imaginei um crime para encerrar o expediente. Reviver certos amores não faz o meu estilo. Não sou saudosista e o melhor sempre está por vir. Mas, enfim, eu estava numa mesa tomando cappuccino com uma ex-namorada de meados do século passado.
Leonardinha continuava a mesma pessoa. Falante e detalhista. Nos primeiros minutos repassou toda a sua vida com o falecido médico. Não tiveram filhos, o esposo não era fértil, mas ela levou a culpa pela infertilidade. Coisas de uma sociedade hipócrita. Fazer o quê? Eu fazia de conta que me interessava pelos assuntos da Leonardinha. Em dado momento, após o segundo cappuccino, imaginei o que faria se tivesse um machado à mão. Raskólnikov não teria dúvidas.
A tarde que parecia um desastre foi salva por Jesus, um dos amigos de ócio. O salvador chegou em nossa mesa e se abancou. Esse era o estilo do Jesus, pouco importando se estava atrapalhando ou não, naquele caso era uma imensa ajuda. Colocou sobre a mesa quatro livros para colorir. Eu estava vendo coisas. Uma velha burguesa com Ulisses e um intelectual sexagenário com livros para colorir. Olhei para Jesus e para céu. – Perdoai-vos senhor ele não sabe ao que faz!
Pedi licença e levantei. Tinha mais o que fazer. Crime e castigo era o meu intento.

O velho que roubava livros – capítulo VIII – 02.05.16

No dia seguinte o meu encontro com Jesus foi na fila para adquirir a ficha para o cafezinho expresso. No meu caso, um cappuccino expresso com bastante canela. Não teceu um comentário sequer sobre Leonardinha. Apresentou-me, entusiasmado, a namorada Madalena – incrível, o mesmo nome de minha mãe –, uma jovem estudante de pós-graduação de agronomia da UFSM. E jovem demais para o meu intelectual e sexagenário amigo. Eu tenho 80 anos e Jesus tem quinze a menos do que eu, calculei em 40 anos a diferença de idade entre o casal. Jesus e Madalena extravasavam felicidade. Minha mente fervilha em elucubrações. Por alguns momentos fiquei imaginando que já tinha visto ou lido algo sobre Jesus e Madalena em O código da Vinci na Santa Ceia. Em Santa Maria a realidade imitando a ficção. Na fila do cafezinho eu seguia os passos de Jesus e Madalena. Num desses momentos Jesus se volta para mim e indaga que desejava ver a minha performance no ato de roubar livros. Queria conhecer finalmente o meu modus operandi.
Nesse dia eu estava em busca de Ilusões perdidas de Honoré de Balzac e o meu felizardo amigo me acompanhou na primeira investida. Tremia e suava como um condenado. O estado emocional de Jesus afetou meu desempenho. Não consegui colocar o primeiro volume da edição na bolsa e fiquei segurando o exemplar também em estado de pânico. Então, resolvi pagar o atendente. Mas num último instante consegui colocar na bolsa junto com o livro de Balzac O estrangeiro de Albert Camus. O instinto falou mais alto e Camus caiu na minha bolsa a tiracolo, inclusive, me surpreendi com minha agilidade. Paguei a saí e fui direto para um banco próximo ao coreto. Também suava como um condenado. Jesus não aguentou e havia sumido. Jamais seria um ladrão de livros. Não tem o timing da ocasião. Nasceu para ser honesto. Eu vou me acalmar lá na confeitaria Copacabana com uma água mineral e uma bomba calórica de chocolate com coco.

O velho que roubava livros – capítulo IX – 03.05.16

Nas minhas incursões pela feira não descobri um exemplar sequer de Crime e Castigo, meu intento deveria ser adiado.
Permaneci um bom tempo em uma banca com uma gama de clássicos da literatura, estava manuseando A trégua de Mário Benedetti, sou leitor desse uruguaio, tenho duas edições em português e uma em espanhol, mas não tive coragem de roubar. Pela primeira vez, tremi. Algo estranho aconteceu porque me bateu um pavor. Acho que o olhar desconfiado da atendente atingiu a minha impetuosidade. Eu fiquei paralisado e não consegui praticar o furto. Coloquei o livro, novamente, no lugar de destaque da banca e fui até o Livro Livre ver o que estava acontecendo. Uma banda de rock pesado estava se apresentando. Isso, sim, é castigo. Existe gosto para tudo e tem quem goste de rock pesado. Mas numa feira do livro onde estamos em estado de contemplação, liberando nossa criação e lapidando palavras e frases, rock pauleira no palco é para jogar no lixo uma reflexão mais introspectiva sobre literatura. Rock pesado de qualidade é um atentado, imagina rock de péssima qualidade, um atentado aos ouvidos. Mas vamos dar um desconto, eu sou um velho ranzinza ex-galanteador e nascido para dançar boleros.
Na praça de autógrafos um poeta regional ainda enfrentava uma enorme fila de leitores. Não sou leitor de poesias e achei inusitada a baita fila para o poeta. Sempre ouvi dizer que poesia não vende. Imaginei que a solidariedade dos amigos não desapontou o escritor. No palco a trilha sonora continuava a mesma: rock pesado. E o poeta deveria estar ansioso por uma milonguinha.
Desculpem-me os autores contemporâneos, mas ler os clássicos é fundamental. Eu só leio os clássicos e literatura atual de qualidade. Então, meu devasso tempo já está comprometido. Autor regional não está no meu horizonte de leitura. Amanhã vou garimpar Memórias de minhas putas tristes de Gabriel García Márquez.

O velho que roubava livros – capítulo X – 04.05.16

Meu último roubo havia sido traumático. Não estava me reconhecendo, tremia e suava nos momentos cruciais. Alguma coisa estava me afetando, nunca tinha sido assim. Sempre mantive uma calma, aliás, uma calma exagerada. Então, resolvi dar uma trégua para o roubo. E nesse dia iria fazer minhas incursões pela feira com o intuito de observar e conversar com os amigos. Na sessão de autógrafos dessa tarde um conhecido estaria autografando seu primeiro romance. Como já afirmei, não leio contemporâneos – só os de qualidade reconhecida – e estaria na fila, apenas, para dar uma força ao amigo. Nessas tardes de autógrafos é comum o escritor se encher de expectativas e no final tudo se transformar em uma grande decepção. Com leitores e principalmente dos amigos que deveriam fazer um esforço e marcar presença. Devo confessar, acho muito triste uma sessão sem leitores na fila, mesmo que seja uma modesta fila.
Um martírio, da mesma forma é um martírio uma enorme e infindável fila. Deveria haver um parâmetro: não poderia haver sessão sem fila e nem sessão com uma fila descabida.
No ano passado na feira de Porto Alegre, uma conhecida escritora distribuiu 300 sorrisos amarelos, autógrafos azuis e selfies coloridas. Fiquei contemplando aquela cena por quase três horas. A autora deve ter feito calos nas mãos. Ao lado dela um desconhecido escritor cumpriu sua hora na sessão e encerrou sem distribuir um autógrafo sequer. Senti pena de ambos. Afinal, é a vida dos escritores. Uns nasceram para escrever best sellers, outros para escrever porcarias e se iludir com a fama.
Eu fui mais honesto comigo mesmo, nem tentei. Minha vida de playboy evitou mais um fracassado das letras.
Assim, encerro o meu expediente sem prejudicar os livreiros. Essa foi a minha boa ação de hoje. Mas voltarei ávido pelos clássicos.

O velho que roubava livros – capítulo XI – 05.05.16

Qual o melhor horário para roubar livros?
Uma dica para principiantes. Logo nos primeiros minutos da abertura da feira. Os livreiros estão com a atenção voltada para a organização dos estandes e os livros estão em desordem, assim, fica mais fácil roubar e se for o caso, dissimular.
Hoje foi um dia profícuo. Consegui colocar três pockets de uma vez só. Algo inusitado em minhas ações e foi uma única vez. Minha feira encerrou nos primeiros quinze minutos. Eu passei o resto da tarde degustando cappuccinos no Café Cultura e folheando minhas aquisições: O longo adeus de Raymond Chandler, Dom Segundo Sombra de Ricardo Güiraldes e Memórias póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis.
Estava distraído numa discreta mesa de fundo folheando meus livros. Satisfeito com minha agilidade com minha perspicácia. De certa forma feliz com os livros adquiridos.
De repente como por encanto Jesus posta-se em minha frente. Com um semblante acabrunhado, triste. Trazia em uma das mãos uma bandeja com cocadas do João. Sentou-se e mostrou a sua última aquisição – no cartão de credito, salientou –, um exemplar de Travessura da menina má de Mario Vargas Llosa. Não quis perguntar o motivo daquela aquisição, estava apenas imaginando algo mais bandalho para um velhote que namora uma jovem. Peguei uma cocada de maracujá e saboreei com o meu quinto cappuccino. Afinal, a vida é doce e bela. Mas como veremos não para o amigo Jesus.
Jesus pediu um café expresso sem açúcar e bem forte e começou a folhear o exemplar de Vargas Llosa. Estava muito triste e quase chorou em minha frente.
Nem as cocadas conseguiriam adoçar a vide desse Jesus em minha frente. Estava todo ouvidos, amigos são para essas horas, porque, pelo visto, era Madalena que estava lavando as mãos. Então, Jesus começou a contar o “longo adeus” de Madalena. Eu, em sua frente, como um “segundo sombra”.


O velho que roubava livros – capítulo XII – 06.05.16

Jesus estava desenxabido. Era o retrato da tristeza no Café Cultura. As cocadas do João não foram capazes de adocicar o ânimo de Jesus.
Quando o meu amigo contou que a namorada – a jovem e angelical Madalena – iria para um intercâmbio no Canadá, eu também fiquei triste em solidariedade a Jesus. Naquele final de tarde Jesus contava suas peripécias com a namorada e o desfecho do seu primeiro mês de namoro. Confesso, eu não me abalo com as desavenças entre namorados e mal consegui prestar atenção ao seu choroso solilóquio. Eu estava em outra dimensão.
Como por encanto, veio em minha mente Lolita de Vladimir Nabokov.
Não estava em minha lista inicial, mas era um bom investimento. Enquanto imaginava algo sobre a vida de Nabokov seus livros e sua vida cotidiana, ouço uma frase que me trouxe de volta a realidade.
– Odracir! Aquela guria me fez de trouxa.
– Como assim, trouxa? – perguntei.
– Tu não tá ouvindo o que estou dizendo. Tá surdo? Eu paguei as passagens de Madalena para o Canadá e ainda dei uma verba extra.
– Trouxa! Tu é muito trouxa. Ingênuo e simplório. Palhaço.
Jesus não gostou da minha sinceridade. Um mês de namoro e ele banca a namorada num intercâmbio no Canadá. Sou capaz de apostar que bancou também a passagem do namorado da jovem e angelical Madalena. Eu não estava muito disposto a ouvir os lamentos descornados de Jesus, e fui salvo pela chegada surpresa de Leonardinha. Vejam como são as coisas: outro dia Jesus me Salva de Leonardinha, agora Leonardinha me salva de Jesus. Paguei a conta e deixei uma cortesia para cada um dos meus velhos amigos. Um cappuccino com bastante canela e chantili. Jesus merecia uma tarde mais doce com a “ex-doce” Leonardinha.
Eu iria em busca de Lolita ou Dom Quixote, o primeiro que se atravessasse em minha frente.

O velho que roubava livros – capítulo XIII – 07/08.05.16

Mais um dia para renovar a engraxar os sapatos e incrementar minha biblioteca. Ainda estou pensando nas obras que não adquiri ontem. Ontem na minha atenta volta pela feira, nem Lolita e nem Dom Quixote. Saldo zero no meu retorno.
Ouço as duas batidinhas na caixa, era o Eduardo me pedindo para trocar para seguir o lustro do outro sapato. 
Quando reviro minha carteira para pagar pelo serviço, Eduardo me mostra o livro que adquirira. Um livro do Paulo Coelho Onze minutos. Dizer o quê? Não li e não gostei? Era a minha intensão imediata, mas a louvável atitude do engraxate não permitiu o sincero comentário. Ele comprou o livro com suas economias e eu adquiria de forma ilícita, mesmo sendo folgado financeiramente. Um tapa-de-luva em minhas pretensões. Com aquela revelação eu fiquei incomodado. Quase me deprimi, mas logo me refiz. Não me abalo por pouca coisa e essas contradições fazem parte da vida. Cada um de acordo com as suas necessidades, a minha era roubar livros. Aliás, adquirir um bem com o esforço do trabalho nunca me comoveu. A filosofia da miséria na me diz respeito. Uma contradição pseudo-dialética. Dobrei a gorjeta de Eduardo e me senti melhor.
Mas haveria mais surpresas. No viaduto Evandro Behr – ou buraco do Behr – encontro Jesus e Leonardinha de mãos dadas. Alguns minutos de espanto. O que dizer numa hora dessas? O que fazer numa hora dessas? Comprar um livro do Paulo Coelho na primeira banca.
Altos loves por entre as estandes da feira. Não acreditava no que estava vendo. Há dois dias Jesus era um guri faceiro com uma namorada que podia ser sua bisneta. Agora, abraçado a uma senhora octogenária. Mais uma vez era o Jesus operando um milagre, só que nesse caso era o Jesus – o verdadeiro – operando em favor de Leonardinha.
E o que resta para um ladrão de livros? Juro, depois dessa eu vou roubar O pequeno príncipe. E vou me isolar por algumas semanas.